Ricardo Paschoalato
3 min readNov 1, 2021

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Nossa parte de noite, de Mariana Enríquez, entre o terror real e sobrenatural

Em Nossa parte de noite, Mariana Enríquez se utiliza de alguns clichês do terror, como sociedades secretas, rituais macabros, casas misteriosas e aparições de espíritos para construir uma história envolvente com uma grande força narrativa e repleta de metáforas sobre a política e a história argentina recente.

A escritora e jornalista Mariana Enríquez é argentina e nasceu em 1973. Venceu diversos prêmios, dentre eles, o prêmio Herralde de Novela 2019 (um dos maiores prêmios da língua espanhola) pelo livro em questão.

Enríquez cria um sombrio mundo fantástico no qual há uma ordem secreta que cultua a chamada Escuridão. A Ordem detém grande poder econômico e político e perpetua-se no poder ao longo dos anos, mas, para isso, precisa de um “médium”, única pessoa com o poder de se conectar com a Escuridão. Porém, esse ritual é extremamente desgastante para os médiuns, que com frequência morrem cedo ou enlouquecem. Na história, acompanhamos a tentativa do atual médium, Juan, de proteger seu filho Gaspar contra este mesmo destino. Principalmente depois que a mãe de Gaspar morreu de forma suspeita. Além deles, Enríquez traz personagens extremamente carismáticos e complexos, muitos deles amamos incondicionalmente, alguns, odiamos nesta mesma proporção, já outros personagens não sabemos se amamos ou odiamos, ou as duas coisas ao mesmo tempo. Apesar dos protagonistas serem dois homens, são as mulheres que ocupam as principais posições de poder da Ordem, não apenas controlando e ditando as regras para os seguidores da sociedade secreta, mas também exercendo seu poder e influência (secretamente) na sociedade como um todo. Um poderoso matriarcado, ainda que na obscuridade.

Além de uma narrativa envolvente, Enríquez traz uma valorização da cultura sul-americana, não apenas pelo cenário da história, majoritariamente entre Buenos Aires e as cataratas do Iguaçu, mas também por fazer referências a diversas lendas, tradições e cultos populares locais na construção do fantástico.

Apesar de nos levar brevemente à Londres psicodélica dos nos 1960, o grande destaque da obra é o fato dela ter como plano de fundo o período da ditadura militar argentina e, posteriormente, a epidemia de AIDS no começo dos anos 1990. Com isso, a história coloca lado a lado o horror sobrenatural e o real, fazendo da obra uma grande metáfora política e social, nos levando a refletir sobre o que é assustador de verdade e sobre as memórias que ainda nos assombram.

Um outro trunfo de Enríquez é trazer de forma orgânica e não estereotipada, personagens LBGTQIA+ e relacionamentos não-monogâmicos. O próprio Juan, o poderoso médium, é um homem bissexual. A representatividade desses personagens cada vez mais se faz relevante e importante no combate ao preconceito e na construção de um mundo mais inclusivo.

Como dito anteriormente, parte da história se passa na região das cataratas do Iguaçu, divisa entre Brasil, Argentina e Paraguai, e isso parece ser um ponto importante na obra. Enríquez talvez queira mostrar que somos todos sul-americanos e que compartilhamos da mesma história de opressão e de desigualdade social, os terrores reais que ainda nos assombram.

São Paulo, 01/11/2021

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